domingo, 15 de junho de 2008

um grito...

Naquela Quinta-Feira derradeira, em plena Páscoa Judaica, Jesus reúne-se com os seus discípulos mais próximos, para celebrar uma Ceia. Segundo os testemunhos e as tradições que recebemos dos três evangelistas, Marcos, Mateus e Lucas, e de Paulo, na 1Cor 11, esta Ceia corresponde à tradição judaica das refeições familiares, solenes, próprias para celebrar momentos especiais, selar compromissos, ou agradecer a Deus determinado dom ou bênção.

Naquela Quinta-Feira, o que celebraria Jesus com os seus discípulos? As repetidas ameaças presentes nos evangelhos não deixam dúvidas: o destino de Jesus estava traçado para breve, os seus actos em Jerusalém não sairiam neutros, a conspiração já estava a ser elaborada, e parece que com um próprio membro daquela Refeição…
Neste contexto, aquela Refeição recebe o carácter de despedida: Jesus quer viver aquele momento com aqueles que o acompanharam desde a Galileia, e quer fazê-lo como testamento: «fazei isto em memória de mim»… O quê, parece que os próprios discípulos não entenderam muito bem naquele momento; entenderiam depois como um mandato a continuar a anunciar e viver em comunidade a dinâmica do Reino inaugurada naquela Novidade radical: Ressuscitou…

Como veria Jesus a sua morte? Naquelas lágrimas no Gétsemani, está o sabor amargo, desprezível, da injustiça, da traição, do sem-sentido: até os seus mais íntimos dormiam, parece que não percebiam, como parece que nunca perceberam – diz um professor meu que os discípulos, nos evangelhos antes da Páscoa, eram ateus... Onde terá Jesus encontrado o mínimo de força, de intuição, uma possibilidade de dar sentido àquela morte, que lhe permitiu, ao menos, arriscar a fidelidade até à morte?

Um qualquer judeu, e mais ainda Jesus claro, alimentava a sua fé e a sua relação com Deus a partir das Escrituras; estas contêm os testemunhos mais provados desta sabedoria do Espírito que percorre séculos. É aí que Jesus vai encontrar a tradição na qual ele próprio entra, a tradição do Servo, do Justo, daquele que vive na fidelidade à vontade de Deus e que, por isso, sofre a perseguição, a exclusão e mesmo a morte. E é talvez aí que Jesus vai buscar as palavras para colocar na sua boca e no seu coração a confiança no Pai que nunca deixou de ser fiel

Salmo 16: Tenho sempre o Senhor diante dos meus olhos; com Ele a meu lado, jamais vacilarei. Por isso, o meu coração se alegra e a minha alma exulta e o meu corpo repousará em segurança. Pois Tu não me entregarás à morada dos mortos, nem deixarás o teu fiel conhecer a sepultura. Hás-de ensinar-me o caminho da vida, saciar-me de alegria na tua presença, e de delícias eternas, à tua direita.

Salmo 73: estive sempre contigo, e Tu me conduziste pela mão; guiaste-me com o teu conselho e, por fim, me receberás na tua glória. Quem mais tenho eu no céu? Na terra só desejo estar contigo. Ainda que o meu corpo e o meu coração desfaleçam, Deus será sempre o meu refúgio e a minha herança.

Isaias 52: Olhai, o meu servo terá êxito, será muito engrandecido e exaltado. Assim como muitos ficaram espantados diante dele, ao verem o seu rosto desfigurado e o seu aspecto disforme, agora fará com que muitos povos fiquem bem impressionados.

2 Macabeus 7: É uma felicidade perecer à mão dos homens, com a esperança de que Deus nos ressuscitará.

A morte sempre constituiu um mistério para Israel, que nunca teve certezas senão a da fidelidade de Deus à Aliança, à Promessa de Vida, ao Poder sobre todos os poderes. A esperança e o grito pela fidelidade de Deus diante da morte surgiu em Israel no contexto do martírio, isto é, do testemunho até à morte daqueles que vivem fiéis à Aliança. Não foi nesta tradição que se inseriu Jesus?

A experiencia da Ressurreição dará uma nova luz, radical e plena, a este mistério, que os discípulos, agora Apóstolos (e sim, crentes) proclamarão. É a única certeza, a par da fidelidade de Deus. O que não resolve o mistério, absurdo, da morte fruto do pecado e do mal. Fica o grito orante, no meio de lágrimas se calhar, de que Deus tem de estar lá, como tem de estar aqui, no meio disto, porque nunca deixou de ser fiel…

um grande abraço

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