domingo, 20 de julho de 2008

de quem te figura ou desfigura...


Partilho hoje uma curiosidade literária: trata-se de um texto de Miguel Torga (pseudónio de Adolfo Correia Rocha, 1907-1995) no qual narra a sua visita à Basílica de S. Pedro, em Roma, no fim dos anos 30. Um abraço e boa semana!




«Na Basílica de S. Pedro, em Roma, consegui desanuviar o espírito, numa catarse poética inesperada, talvez porque ali tinham raízes as mais clamorosas perseguições, ou dali recebiam sanção, e ali viessem à tona com maior intensidade as razões de queixa do antigo crente, desiludido no próprio tabernáculo da fé perdida. Pela nave fora, cada passada que dava ia marcando o ritmo dos versos:

Junto de ti, Senhor,
Ou de quem te figura ou desfigura,
É que o meu coração, aberto ao teu Amor,
Se fecha numa intima amargura!

Dentro deste castelo desmedido
Que proclama o teu nome e o teu poder,
É que, humano e vencido,
Me apetece negar e combater!

À sombra paternal do teu cajado,
É que revive em mim a ovelha tresmalhada
A pastar o pecado
Remoido nos sonhos da manada!

Sob o teu manto de oiro, que arrefece,
É que eu me sinto irmão
Da toupeira sem olhos, que se aquece
Enterrada no chão!

Esmagado pelo peso de tanto mármore, de tanto pórfiro, de tanto oiro, o grito irrompera de dentro de mim como um gemido. Só depois de o ouvir é que dei conta de que funduras emergira e até onde ia a sua ressonância. A pompa dos mausoléus, a sumptuosidade dos altares, o esplendor e a majestade dos paramentos e alfaias do culto, pertenciam a uma religião roída por todos os vícios da riqueza. E eu mamara o leite da espiritualidade no seio doutra fé. Na das catacumbas, que a dois passos abriam o coração ao mundo, humilíssimas, a renegar na sua simplicidade semelhante ostentação. Embora a assinatura de S. Paulo fosse manifestamente falsa, e a pegada de Cristo inventada também, havia os ossos dos mártires, as galerias cavadas no ventre da terra, o selo da renuncia a autenticar a convicção. E isto falava-me a secretos recessos da alma, transportava-me a um plano de valores que a descrença não invalidara.»

(in A Criação do Mundo)

1 comentário:

Anónimo disse...

Olá Rui Pedro!
Vim cá dar uma espreitadela e fui-me detendo; aqui vai o meu comentário.

Antigo crente, assim se achou Miguel Torga, de fé perdida...não "revê" Deus naquele castelo desmedido...tendo afirmado mesmo vontade de negar e combater o nome e o poder do Senhor...

...

É verdade, ainda hoje há muito de medievalismo na hierarquia e estrutura da nossa Igreja, se calhar, não tão de pedra e cal, penso, quanto esses edifícios...

Hoje a linha da Fé tem de seguir outros caminhos e quem sabe mais que eu sabe bem quais são.Descobrir o Jesus de Nazaré dos evangelhos passa por catequese de adultos, em comunidade e continuada. Ele é a Boa-Notícia para toda a humanidade, pelo menos para os que estão em comunhão nao só com Ele mas também em comunhão de irmãos na mesma Fé.

Um abraço.
Fernanda -CB 5ªf