quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Gen 2,4b-24: Adam, ser de relações vitais


Quando o Senhor Deus fez a Terra e os céus, e ainda não havia arbusto algum pelos campos, nem sequer uma planta germinara ainda, porque o Senhor Deus ainda não tinha feito chover sobre a terra, e não havia homem para a cultivar, e da terra brotava uma nascente que regava toda a superfície, então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo.

Depois, o Senhor Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o homem que tinha formado. O Senhor Deus fez brotar da terra toda a espécie de árvores agradáveis à vista e de saborosos frutos para comer; a árvore da Vida estava no meio do jardim, assim como a árvore do conhecimento do bem e do mal. (…)

O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar. E o Senhor Deus deu esta ordem ao homem: «Podes comer do fruto de todas as árvores do jardim; mas não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás.»

O Senhor Deus disse: «Não é conveniente que o homem esteja só; vou dar-lhe uma auxiliar semelhante a ele.» Então, o Senhor Deus, após ter formado da terra todos os animais dos campos e todas as aves dos céus, conduziu-os até junto do homem, a fim de verificar como ele os chamaria, para que todos os seres vivos fossem conhecidos pelos nomes que o homem lhes desse. O homem designou com nomes todos os animais domésticos, todas as aves dos céus e todos os animais ferozes; contudo, não encontrou auxiliar semelhante a ele.

Então, o Senhor Deus fez cair sobre o homem um sono profundo; e, enquanto ele dormia, tirou-lhe um dos seus lados, cujo lugar preencheu de carne. Do lado que retirara do homem, o Senhor Deus fez a mulher e conduziu-a até ao homem. Então, o homem exclamou: «Esta é, realmente, osso dos meus ossos e carne da minha carne. Chamar-se-á mulher, visto ter sido tirada do homem!» Por esse motivo, o homem deixará o pai e a mãe, para se unir à sua mulher; e os dois serão uma só carne. (Gen 2, 4-24)

O texto de Gen 2,4b-3,24 é provavelmente mais antigo que o anterior, pertencente ao ambiente monárquico em Jerusalém nos sécs. IX até VII. Não se trata de um relato sobre a criação do mundo, senão sobre a criação do Homem (2,4b-24) enquanto homem e mulher, e da origem e existencia do mal (2,25-3,24). De novo, o nosso texto procura respostas face ao presente, real, do ser humano na sua experiencia do mal. E descobre-as à luz da experiencia de fé de Israel, no esquema tradicional com que lê a sua história:

O Homem é modelado do solo, eleito e colocado no jardim, preparado por Deus, dá-lhe a missão de cuidar do jardim e guardar o seu mandamento, o Homem não o cumpre, Deus expulsa Adam do jardim para Oriente. Mas, no fim, começa uma história de regresso, vestindo o Homem, impedindo-o de ser eternamente pecador.

Israel: o Povo nasce no deserto, é eleito e libertado por Deus rumo à Terra Prometida, recebe a missão de a cuidar no culto e no cumprimento da Aliança, mas Israel não cumpre essa missão, torna a Terra Prometida um lugar de sofrimento por não viver na lógica da Graça, até partir para o exílio, para Oriente (Assíria, Babilónia). Mas Deus parte sempre com o Povo, para com ele começar uma história de reconciliação.

Portanto, temos no texto uma leitura da história da Humanidade à luz da experiencia de relação de Israel com Deus, sem qualquer pretensão de apresentar informações científicas. O autor não se preocupa com a origem da Criação: ela surge, de novo, pela pura vontade de Deus. Mas a Criação só ganha sentido com o Homem: é ele quem a pode cultivar (v.5). É para ele que a Criação está aí, para que nela exerça o seu trabalho, nela colabore com o Criador.

É de facto magnífica a imagem com que o autor expressa a origem do Homem, ou seja, a relação deste com Deus. Utiliza a figura popular de Deus como modelador do Homem a partir do pó do solo (Adamah) tornando-se assim o Adam. Aqui se expressa a condição natural do Homem, ligado à Criação e partindo dela, sem que esta condição possua, no nosso texto, qualquer conotação negativa, ao contrário da lógica dualista grega. Aqui surge a primeira relação vital de Adam: com a Criação, o mundo, a sua condição natural.

É a este Adam que Deus “sopra” um “alento de vida” tornando-se um “ser vivo” que respira. Na tradição bíblica, é pelo ar de Deus, a sua Ruah, que o Homem vive, e morre quando Deus lhe retira esse ar, deixando de respirar. O judaísmo lerá neste sopro um Beijo de Deus ao Homem. Intimidade, troca de hálitos, toque. Profunda comunhão de Deus com o Homem, por sua iniciativa – eis a Graça. De novo, numa harmonia admirável, sem lutas, conflitos, méritos, conquistas, posses. Apenas dom e acolhimento, Graça e gratidão. O Homem é eleito por Deus, o Homem na sua condição integral, unitária, de ser natural, “vindo do pó” – é esse que Deus beija, não um qualquer “princípio espiritual” e é nessa lógica, Adam vivificado pelo Beijo de Deus, que tradição bíblica vê o ser humano.

A Graça de Deus não termina por aqui: Deus prepara um jardim para o Homem, um jardim que o Homem não cultivou nem conquistou, mas recebeu por pura Graça, com a missão de o acolher e cuidar. Um jardim com todos os dons, cujo centro é a Árvore da Vida, pela qual o Homem vive, presente desde o princípio no Projecto de Deus, sem restrições nem preços. O autor desenvolve outra relação vital do ser humano, presente desde o princípio: a relação com Deus, relação de intimidade e comunhão, relação de convivência num mesmo jardim preparado por Deus e acolhido na Graça, onde Deus “passeia à brisa da tarde” (3,8). Um Projecto comum, uma Aliança, vida partilhada, na qual o Homem trabalha, cuida, dá sentido à sua vida e a toda a Criação.

E Deus dá um mandamento ao Homem: não comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. A experiencia do Deus da Aliança conduz a uma grande proclamação: sendo o seu Criador, Deus estabelece o Homem como seu interlocutor, faz uma Proposta que não é imposição mas convite à Resposta, lança o Homem como ser responsável, livre e autónomo. Segundo o autor, mais à frente, será esta a origem do mal – o ser humano é capaz de recusar a Aliança, e faz-lo, deixa de viver em Aliança, deixa de acolher a vida e a terra por Graça. Mas aqui está uma dimensão fundamental da relação de Deus com Adam: o respeito, a diferenciação que torna o Homem livre, o diálogo que Deus estabelece e que torna o Homem num tu, num parceiro de Aliança. Em linguagem contemporânea, Adam é constituído como pessoa, sujeito de vontade, parceiro de relação. Neste mandamento de Deus, que exprime a Aliança de Israel na escuta fundamental, está a maior proclamação da dignidade do ser humano.

Relação vital com a Criação, à qual o Homem pertence e na qual desenvolve a sua vocação de cultivar e cuidar (trabalhar, criar, inventar), e relação vital com Deus, de quem recebe a vida em intimidade e comunhão, de quem é eleito, de quem é constituído parceiro de Aliança, interlocutor de diálogo, chamado a dar uma resposta livre e acolhedora. Falta a terceira relação vital segundo o autor: a relação com o tu humano.

De facto, Adam, a Humanidade, está só: não lhe chega os animais e seres a quem domina atribuindo-lhes um nome. Parece até que não lhe chega a relação com o Criador, ou antes, o Homem não pode ainda dar a sua resposta ao mandamento de Deus – esta resposta surge no tu-a-tu humano, é na fraternidade e comunhão que a Humanidade corresponde à Aliança. A mulher, o tu, a auxiliar ou parceira de comunhão, o Próximo, é também dom de Deus que o Homem não conquista nem domina – apenas acolhe, primeiro no sono, lugar de revelação na Biblia, e depois num grito de júbilo, na primeira vez que fala em todo o texto: “é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (v.23), é da minha Humanidade, brota do seu “lado” para agora chegarem à verdadeira vocação humana, a comunhão: uma só carne, uma só comunhão, pertença, partilha, diálogo. O Homem torna-se imagem de Deus no diálogo, na comunhão, no respeito, tal como Deus o faz. E esse Amor que acontece ultrapassa a mera relação humana: atravessa a Humanidade como a sua espinha dorsal: “todo aquele que ama nasceu de Deus pois Deus é Amor” (1Jo 4,8).

Está concluída a leitura de sentido que o autor dá ao ser humano à luz da experiencia de fé do seu Povo: a pessoa como ser ligado à Criação, a Deus e ao tu humano, na lógica da Aliança, do diálogo e da comunhão, do respeito, acolhimento e Graça. O autor não pretende elaborar uma mitologia de um começo longínquo, senão que exprime à luz da sua fé a compreensão do Homem no presente, o sentido da sua existência que está chamado a viver e a construir.

2 comentários:

Sol da manhã disse...

A imagem do beijo deixa-me sempre, sempre a pensar... aliás, nem é bem a pensar, mas também não sei que nome lhe dar!

Voltei! Correu tudo lindamente! Muito melhor que as expectativas :)! E até aprendi uma palavra nova em hebraico (eheheheh), e outras coisas que não estava à espera! Quem diria!!! Depois partilho.

Rui Pedro, volto com mais calma que isto aqui é para degustar com tempo!

SHALOM

Rui Vasconcelos disse...

Bem-vinda, Maria, de novo! Fico com curiosidade para saber qual é a palavra hebraica.
Então, vamos continuar a caminhar por estas bandas. Um abraço!