domingo, 31 de agosto de 2008

Gen 1,1-2,4a (II): Adam, imagem de Deus

Depois, Deus disse: «Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra.» Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher.

Abençoando-os, Deus disse-lhes: «Crescei e multiplicai-vos, enchei e dominai a terra. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus e sobre todos os animais que se movem na terra.» Deus disse: «Também vos dou todas as ervas com semente que existem à superfície da terra, assim como todas as árvores de fruto com semente, para que vos sirvam de alimento. E a todos os animais da terra, a todas as aves dos céus e a todos os seres vivos que existem e se movem sobre a terra, igualmente dou por alimento toda a erva verde que a terra produzir.»

E assim aconteceu. Deus, vendo toda a sua obra, considerou-a muito boa. Assim, surgiu a tarde e, em seguida, a manhã: foi o sexto dia. Foram assim terminados os céus e a Terra e todo o seu conjunto.

Concluída, no sétimo dia, toda a obra que tinha feito, Deus repousou, no sétimo dia, de todo o trabalho por Ele realizado. Deus abençoou o sétimo dia e santificou-o, visto ter sido nesse dia que Ele repousou de toda a obra da criação. Esta é a origem da criação dos céus e da Terra.
(Gen 1,26-2,4)

A Criação do Homem, no nosso texto, é envolvida numa solenidade especial, como que o momento alto da celebração liturgica do Sábado. O Homem não “surge” nem é “produzido segundo as suas espécies”, como os animais: provém de uma vontade expressa de Deus, directa: “Façamos”. Por tres vezes Deus fala ao Homem, “diz” (v. 26,28 e 29) e, só no v.27, numa breve proclamação surge o verbo técnico “bara” por tres vezes, mais do que em todo o restante texto. E se, ao longo do texto Deus vai proclamando que “tudo é bom”, em relação ao Homem o tom chega ao superlativo: é “demasiado bom” (v. 31). Ao contrário do texto de Gen 2,4-24, aqui o Homem não ocupa o lugar central do texto, senão que se insere em todo o processo da Criação. No entanto, o autor não deixa de lhe reservar um lugar especial, e de certo modo todo o texto corre para ele, atingindo um auge no sexto dia, para cumprir a sua plentiude no sétimo dia.

Aqui não temos um desenvolvimento da relação Homem-Mulher à luz da Aliança, como surgirá em Gen 2,20-24. O texto é directo e declara logo que Adam (a Humanidade, o ser humano) é criado homem e mulher, de imediato, sem hierarquização nem qualquer valorização. É enquanto Homem e Mulher, na complementariedade, que Adam, a Humanidade, é imagem de Deus.

“Imagem de Deus, à sua semelhança”: o significa mais original desta expressão é que o Homem é chamado por Deus a ser o seu representante junto de toda a Criação, com uma dignidade especial, com a missão de “dominar” e “submeter” a terra e todos os elementos. Esta proclamação surge por exemplo no Salmo 8:

Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos,
a Lua e as estrelas que Tu criaste:
que é o homem para te lembrares dele,
o filho do homem para com ele te preocupares?
Quase fizeste dele um ser divino;
de glória e de honra o coroaste.
Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos,
tudo submeteste a seus pés.
(Sal 8, 4-7)
Vemos a dignidade senhorial de que é revestido o Homem, desde a experiencia original da Aliança, não só os reis, os senhores proprietários, mas todo o ser humano. Para a lógica babilónica, o Homem era um ser surgido ao acaso, em concorrencia e inveja com as divindades, até dominado pelos elementos marinhos e astrológicos; para Aristóteles, o Homem é um “animal racional” apenas com algumas qualidades que o distingue dos animais e que só alguns podem exercer – os escravos, as mulheres, as crianças não exercem as capacidades da razão e, logo, não possuem dignidade. No nosso texto, o Homem, toda a Humanidade é chamada por Deus a uma dignidade nova, que nenhum elemento recebe, a dignidade da relação com Deus. O primeiro Humanismo é, de facto, o Humanismo biblico.

A Criação fica “concluida” com a vocação do Homem, o que não significa que fique “acabada”. De facto, surge aqui outra novidade radical do texto: o Homem é concriador de Deus, a Criação não é um mecanismo fechado, automático, dominado pela necessidade, mas é uma história que o Homem escreve com o Criador, uma história aberta à novidade, à invenção, à arte, à liberdade. A Criação tem como origem a pura liberdade gratuita de Deus e acontece na liberdade do Homem que a lidera. O Homem é Partner de Deus, e a Imagem é uma história de Aliança na qual o Homem acolhe de Deus a sua vida e toda a Criação e o próprio Deus se compromete com o Homem: de facto, Deus elege-o com seu representante, a todo o ser humano, e de certo modo entrega-se nas suas mãos. O sucesso desta história que é a Criação dependerá do sucesso da relação de Deus com o Homem e esse sucesso já se inaugurou, na mútua fidelidade que possibilitou a Ressurreição do Nazareno e a inauguração da “Plenitude dos Tempos”.

O esquema da Aliança, da relação de Deus com o Homem, estará na base do texto seguinte, de Gen 2,4b-3,24. Aqui o realce está na dignidade do Homem como concriador, Partner de Deus na obra da Criação que continua; dignidade que pertence a toda a Humanidade, todo o ser humano, homem e mulher.

O sétimo dia surge também com a solenidade própria do Sábado para a Aliança de Israel: surge por três vezes a expressão “sétimo dia”, Deus “descansa” neste dia, “abençoa-o e santifica-o”. De novo, segundo a posição do autor, toda a Criação, a Natureza, a História estão ao serviço da Aliança, são “abraçadas” pela Salvação que Deus oferece em Aliança, a sua própria vida, o seu próprio descanso. Para Israel, o Sábado significa a paragem do trabalho, da rotina, do procurar responder às necessidades vitais («Porventura não é a vida mais do que o alimento, e o corpo mais do que o vestido? Procurai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça, e tudo o mais se vos dará por acréscimo.», Mt 6,25;33). Israel celebra a Aliança, proclama a História de Salvação que dá sentido ao tempo, ao correr dos dias, à vida como construção e à Criação como Projecto.

Recorda-te do dia de sábado, para o santificar. Trabalharás durante seis dias e farás todo o teu trabalho. Mas o sétimo dia é o sábado consagrado ao Senhor, teu Deus. Não farás trabalho algum, tu, o teu filho e a tua filha, o teu servo e a tua serva, os teus animais, o estrangeiro que está dentro das tuas portas. (Ex 20, 8)

Não deixa de ser interessante a novidade que este sábado constituiu naquele contexto: nenhum povo possuía um dia assim dedicado ao descanso, no qual até os escravos paravam o trabalho – parece até que, no tempo de Jesus, os próprios romanos tinham inveja desta tradição religiosa! Ao colocar a Criação a culminar no 7º dia, o autor está a proclamar o seu sentido e finalidade: a Aliança. É, de novo, uma leitura teologal da realidade, que procura o seu sentido para além de todas as explicações e esquemas científicos, antropológicos, parciais.

O repouso de Deus significa também o espaço do Homem, a sua liberdade e responsabilidade para ser: na lógica bíblica da Aliança, Deus não vive em concorrência com o Homem mas elege-o como seu parceiro. Precisamente porque se dá, permite ser; porque ama, dá espaço para o outro ser diferente, escrever a sua própria história. Como um pai com o seu filho. A lógica de Deus é a lógica da Kenosis revelada em Jesus: «Ele, que é de condição divina, não considerou como uma usurpação ser igual a Deus; no entanto, esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo.» (Flp 2,6). É aí que o Homem pode ser verdadeiramente, na sua dignidade: parceiro na obra da Criação. Um 7º dia, uma Plenitude prometida, esperada, preparada pela História, uma Plenitude já inaugurada no Dom total da vida de Deus, da sua Salvação, na Ressurreição de Jesus. Esta torna-se o 1º dia de uma nova Semana: a Criação chega ao seu Sentido, inaugura-se a Nova e Eterna Aliança, o Homem é divinizado.

Um texto poético, celebrativo, no mais profundo da verdade e do real, em que a Criação e o Homem são cantados à luz da Aliança, do jeito de Deus se revelar como Graça, em que toda a realidade é abraçada na História da Salvação que Deus escreve com a Humanidade. Um sentido de Plenitude prometido por Deus, Promessa feita a Abraão, celebrada no Sábado em que o Homem é convidado à intimidade de Deus. O ser humano, a Humanidade, que ganha uma dignidade nova, como Partner de Deus, a quem a Criação é entregue, uma Criação boa, sem absurdos, determinismos e sem-sentidos que não sejam assumidos pela Palavra de Sentido, Palavra de Aliança.

um grande abraço!

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