sexta-feira, 4 de julho de 2008

Revolução na imagem e relação com Deus (religião) - 1João

A Primeira Carta de João tem uma linguagem muito próxima à do Evangelho com o mesmo nome, pelo que é considerada ou do mesmo autor, ou da mesma comunidade. É também um escrito já do final do I século, pelo que apresenta uma linguagem mais elaborada sobre a experiencia de Fé das primeiras comunidades. É uma carta que não tem destinatários explícitos, como por exemplo as cartas de Paulo (aos Romanos, aos Filipenses, etc). Mas o tom da sua linguagem é epistolar, ou seja: surge como resposta a problemas concretos de determinadas comunidades, apontando as dificuldades e apresentando respostas.

A nossa Carta lida com um problema muito frequente no cristianismo primitivo: uma corrente de pensamento chamada o Gnosticismo. Os gnósticos (de gnose, em grego, que significa conhecimento) eram cristãos, pertencentes às comunidades, que viviam uma Fé baseada no conhecimento intelectual de Deus, numa relação puramente individual e espiritual; para eles, Deus era um ser Supremo, uma Divindade sem rosto, e Jesus era um mestre escolhido que veio ensinar o caminho até essa divindade. Os gnósticos separavam totalmente o chamado mundo “espiritual”, superior, divino, e o mundo “terreno”, material ou humano. O caminho para a divindade passava pela separação do “terreno” e subida ao “espiritual” através do conhecimento.
Perante esta corrente verdadeiramente herética (no sentido de heresia=divisão), a Carta vai responder com uma linguagem sobre Deus que para nós não é comum, uma linguagem fortemente semita, mais que grega. Começa logo pelo inicio: O que existia desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplámos e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida (1Jo 1, 1). Ao contrário da noção grega de conhecer (intelectual), o autor opõe a noção hebraica: conhecer é comungar, relacionar-se, sentir, aproximar-se, deixar-se transformar. Ver a Deus significa amar e viver na comunhão com Deus deixando-se transformar: mais que uma questão intelectual, é uma questão vital. O que sabemos é que, quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é. Todo o que tem esta esperança em Deus, torna-se puro, como Ele, que é puro. (1Jo 3, 2-3)

Outra das diferenças que encontramos está no caminho para Deus, ou no caminho que Deus toma para vir ao nosso encontro – e aqui está a grande revolução seja na imagem de Deus seja na lógica de relação com Ele (religião): Se alguém disser: «Eu amo a Deus», mas tiver ódio ao seu irmão, esse é um mentiroso; pois aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. E nós recebemos dele este mandamento: quem ama a Deus, ame também o seu irmão. (1Jo 4, 20-21) Mais que uma questão de moral, é uma questão de verdade: perante as tentações gnósticas de uma relação individual e puramente espiritual com Deus, a verdadeira relação acontece na relação com os irmãos. E este “mandamento” vem do próprio Cristo, por quem conhecemos o verdadeiro Amor: Foi com isto que ficámos a conhecer o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos. (1Jo 3, 16).

Por isso chegamos talvez à frase mais forte de todo o Novo Testamento: Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e chega ao conhecimento de Deus. Aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é Amor. (1Jo 4, 7-8) Perante a tentação do conhecimento, o autor apresenta o verdadeiro caminho da relação com Deus (podíamos dizer, o verdadeiro caminho da religião): o Amor, entendido claramente pela carta como vivencia do amor fraterno, construção da comunhão ou, em linguagem evangélica: o Reino de Deus. E Deus é Amor porque é Deus quem toma a iniciativa de todo o Amor, é em Deus quem começa esta espinha dorsal que percorre a Humanidade como Corpo: E o amor de Deus manifestou-se desta forma no meio de nós: Deus enviou ao mundo o seu Filho Unigénito, para que, por Ele, tenhamos a vida. É nisto que está o amor: não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou e enviou o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados (1Jo 4, 9-10).

Este aproximar-se de Deus em Jesus Cristo, a Graça na linguagem bíblica, abraça os homens no seu Amor, no seu Espírito, e adopta-os e gera-os como filhos de Deus, à imagem do próprio Filho: Vede que amor tão grande o Pai nos concedeu, a ponto de nos podermos chamar filhos de Deus; e, realmente, o somos! (1Jo 3,1). Esta adopção filial, claro, continua a não ser uma relação individual, espiritualista ou jurídica, mas uma verdade fraterna: Se alguém possuir bens deste mundo e, vendo o seu irmão com necessidade, lhe fechar as entranhas, como é que o amor de Deus pode permanecer nele? (1Jo 3, 17).
A filiação divina é uma realidade dinâmica, a emergir no Homem a par da sua humanização, da sua vivencia e construção comunitária e eclesial. É nesta relação dinâmica no Amor que acontece a purificação de todo o pecado: sendo a lógica bíblica do pecado como atitude, mais que como actos, a resposta positiva ou salvífica é uma resposta dinâmica e transformadora, mais que pontual; a libertação do pecado passa pela acção amorosa e transformadora de Deus em nós, unidos ao seu Filho, e que é acolhida na dinâmica fraterna.

É verdadeiramente digna de ser lida, esta Carta. Como os demais documentos do Novo Testamento, trata-se de uma explicitação mais directa do que é a experiencia de fé das comunidades a partir do Evangelho de Jesus. São as próprias lógicas religiosas de relação com Deus que são colocadas em causa:
Já não é o Homem quem procura e alcança a Deus, pelo conhecimento ou pelas boas obras, mas é Deus quem toma a iniciativa do Amor através do seu Filho.
A relação com Deus já não é uma questão individual de alcançar o mundo “superior”, senão continuar a dinâmica de vida e amor realizada plenamente pelo Filho Jesus: dar a vida pelos homens, por amor, até aos mundos mais “inferiores”.
A relação com Deus já não passa por uma mera linguagem “espiritual” ou aérea, mas é fortemente marcada pelos sentidos, pelo corpóreo e histórico: neste caso, “tocar” e “ouvir” o Verbo da Vida é “tocar” e “ouvir” os privilegiados de Mateus 25.
Como dirá Agostinho, “Ninguém pode dizer que rosto tem o Amor. No entanto, tem pés, e eles levam até à Igreja; tem mãos, e elas socorrem o necessitado; tem olhos, pois por eles vês o indigente; tem ouvidos, e a eles diz o Senhor: quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça.”
um grande abraço

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