terça-feira, 8 de julho de 2008

Revolução no culto da Nova Aliança - Hebreus

A chamada Carta aos Hebreus é também um dos últimos escritos do Novo Testamento, provavelmente posterior aos evangelhos sinópticos e anterior aos escritos joaninos. Na tradição considerou-se escrita por Paulo, mas a sua linguagem muito própria faz pensar noutro autor, provavelmente um judeu culto convertido ao cristianismo. É sem duvida um dos escritos de mais difícil leitura de todo o Novo Testamento, pela sua linguagem fortemente judaica; mal compreendida, serve de justificação para leituras ritualistas e cultualistas do cristianismo, quando precisamente uma leitura mais profunda prova o contrário: o texto representa uma revolução radical na maneira de entender a linguagem do culto querido por Deus e vivido pelos cristãos.

Tal como a 1João, a carta aos Hebreus parece surgir como resposta a um problema concreto: da parte de cristãos convertidos do judaísmo, emigrados talvez da Palestina para outras regiões do Próximo Oriente, surgiu como que um “saudosismo” das manifestações impressionantes e vislumbrantes do culto do templo de Jerusalém, entretanto destruído no ano 70 d. C. pelas legiões romanas. Diante de todo o sistema cultico-ritual judaico, composto por sacerdotes, sacrifícios, utensílios vistosos, sistemas de purificação, etc., as reuniões das comunidades cristãs pareciam pecar pela sobriedade e simplicidade. É diante da tentação do regresso às instituições rituais do Antigo Testamento (que a Igreja infelizmente cairá muito ao longo da sua história) que a Carta aos Hebreus responderá de um modo surpreendente.

O grande fundamento para justificar o modo de viver e celebrar das comunidades cristãs é o próprio Jesus Cristo. Ele é a Revelação plena, nova e definitiva do Projecto Salvífico de Deus: «Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho» (Heb 1, 1-2). Jesus não é mais um profeta a juntar aos profetas e testemunhas da história bíblica: ele é o Filho, o Messias esperado, Ungido e Gerado por Deus como Filho, no Espírito Santo. Ressuscitado, vive da própria Vida de Deus, e realiza o Perdão dos pecados reconciliando a Humanidade com Deus. O que dizemos de Jesus, não o podemos dizer de mais nenhum homem, nem de Moisés.

A palavra sacerdote vem precisamente de sagrado, e liga-se, na tradição religiosa da Humanidade, àqueles que fazem a ligação entre a divindade e os homens. Os sacerdotes do templo ofereciam sacrifícios pelos pecados do povo, mas, segundo o autor, esses sacrifícios não eram capazes de transformar os pecadores: «A Lei nunca pode conduzir à perfeição aqueles que participam nos sacrifícios que se oferecem constantemente cada ano.» (Heb 10,1)

Ora, Jesus, na sua vida histórica, não esteve ligado à classe sacerdotal de Jerusalém: «Se Cristo estivesse na terra, nem sequer seria sacerdote, pois já existem aqueles que oferecem os dons segundo a Lei» (Heb 8, 4). O seu ministério, o seu serviço foi outro: viveu a absoluta solidariedade com os homens partilhando o seu sofrimento, e por essa solidariedade entregou a sua vida até à morte: «Nos dias da sua vida terrena, apresentou orações e súplicas àquele que o podia salvar da morte, com grande clamor e lágrimas, e foi atendido por causa da sua piedade. Apesar de ser Filho de Deus, aprendeu a obediência por aquilo que sofreu e, tornado perfeito, tornou-se para todos os que lhe obedecem fonte de salvação eterna, tendo sido proclamado por Deus Sumo-sacerdote» (Heb 5, 7-10).
O sacerdócio de Cristo, a comunhão que gera entre Deus e os Homens, radica precisamente na sua Humanidade, isto é, na sua solidariedade total para com os do seu povo: «De facto, tanto o que santifica, como os que são santificados, provêm todos de um só; razão pela qual não se envergonha de lhes chamar irmãos» (Heb 2, 11). Sendo o Gerado por Deus como Filho, no Espírito Santo, partilha o mesmo Espírito com os homens a quem chama de irmãos. O segredo do seu sacerdócio não é a classe ritual, mas a solidariedade na sua missão messiânica: «Por isso, Ele teve de assemelhar-se em tudo aos seus irmãos, para se tornar um Sumo-sacerdote misericordioso e fiel em relação a Deus, a fim de expiar os pecados do povo. É precisamente porque Ele mesmo sofreu e foi posto à prova, que pode socorrer os que são postos à prova.» (Heb 2, 18)

Deste modo, Cristo inaugura o novo Culto, ou o culto da Nova Aliança, segundo a vontade do Pai: «Por isso, ao entrar no mundo, Cristo diz: Tu não quiseste sacrifício nem oferenda, mas preparaste-me um corpo. Não te agradaram holocaustos nem sacrifícios pelos pecados. Então, Eu disse: Eis que venho - como está escrito no livro a meu respeito - para fazer, ó Deus, a tua vontade. Disse primeiro: Não quiseste nem te agradaram sacrifícios, oferendas e holocaustos pelos pecados - e, no entanto, eram oferecidos segundo a Lei. Disse em seguida: Eis que venho para fazer a tua vontade. Suprime, assim, o primeiro culto, para instaurar o segundo. E foi por essa vontade que nós fomos santificados, pela oferta do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez para sempre.» (Heb 10, 5-10).
Fica inaugurado o novo culto, confirmado por Deus na Ressurreição de Jesus: a entrega da própria vida ao Pai no acolhimento da sua vontade, numa dinâmica de solidariedade em relação aos irmãos. Forma-se, então, o novo Templo, já não construído pelos homens, mas inaugurado pelo próprio Deus: o Corpo de Cristo, o Filho, no qual pertencem em comunhão no mesmo Espírito Santo todos os homens que já participam também da própria Vida de Deus: «Temos, pois, irmãos, plena liberdade para a entrada no santuário por meio do sangue de Jesus. Ele abriu para nós um caminho novo e vivo através do véu, isto é, da sua humanidade e, tendo um Sumo-sacerdote à frente da casa de Deus, aproximemo-nos dele com um coração sincero.» (Heb 10, 19)

Apesar da sua linguagem por vezes difícil, a Carta aos Hebreus representa uma resposta decisiva a todas as tentações cultualistas e ritualistas próprias da religiosidade humana. Desenvolve as intuições já presentes em Paulo, quando fala da Comunidade como «Templo do Deus Vivo» (1Cor 3, 17) ou do próprio Jesus nas suas criticas ao ritualismo ligado à lei e ao templo: «Derrubai este templo, e em três dias o reconstruirei. Ele referia-se ao templo do seu Corpo. Quando ressuscitou da morte, os discípulos recordaram que ele havia dito isso» (Jo 2, 19.21).
Daqui podemos retirar consequências práticas para a vida comunitária na Igreja: o Novo Testamento evita a palavra sacerdote (iéreus) para falar dos ministros e líderes das comunidades, precisamente para evitar atribuir a qualquer homem privilégios de mediação na relação com Deus: «Pois, há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem: Cristo Jesus, que se entregou a si mesmo como resgate por todos.» (1Tim 2, 5). As reuniões da comunidade cristãs são marcadas pela linguagem da Acção de Graças e louvor (Eucaristia), alimentadas pela escuta da Palavra: toda a Comunidade é o templo da Nova Aliança, onde quer que se reúna. As suas celebrações liturgicas podem ter ritos e símbolos necessários para alimentar a fé dos crentes; mas não se pode esperar deles uma eficácia cultual automática, na relação com Deus e no perdão dos pecados: esta provém apenas da Ressurreição de Cristo, já inaugurada. A sua eficácia será tanto maior quanto mais provocarem nos crentes esta abertura ao Espírito Santo que os conduz no acolhimento da vontade de Deus e na entrega da própria vida em solidariedade com os irmãos, segundo o próprio Jesus de Nazaré.
um grande abraço

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