quarta-feira, 9 de julho de 2008

Revolução na Moral: para a Liberdade dos Filhos de Deus - Gálatas

Está praticamente confirmado que a Carta aos Gálatas foi escrita pelo próprio punho de Paulo, sendo anterior aos evangelhos sinópticos. A Galácia é uma região na actual Turquia central na qual Paulo terá passado nas suas viagens. De novo, na origem da carta está um problema de fundo que assolava a comunidade na ausência de Paulo e ao qual este deverá responder. Certamente, a comunidade seria formada na sua maioria por cristãos convertidos do paganismo, aos quais o encontro em Jerusalém entre Paulo e os apóstolos Pedro e Tiago havia liberto da necessidade da circuncisão e da observância da lei judaica (Act 15, 1-34). Mas alguns elementos convertidos do judaísmo haviam chegado à comunidade e pregavam a necessidade da circuncisão e da observância da lei de Moisés; e parece que os gálatas estavam dispostos a aceitar. É contra esta situação que Paulo se insurge e escreve a carta.

Na sua resposta, Paulo vai colocar a lei de Moisés no seu devido lugar. O que está em causa é a própria identidade de Deus e o significado da missão e Ressurreição de Jesus: a circuncisão e a lei representam um modelo de vivencia diante de Deus contrário ao Evangelho de Jesus. Trata-se do que Paulo chama a Justificação: onde encontramos a raiz, o fundamento que torna o Homem justo, valorizado diante de Deus, ou, numa linguagem mais actual, onde encontramos a dignidade e a realização do ser humano no Projecto de Deus? O Homem é digno, valioso aos olhos de Deus através do cumprimento religioso-moral? A transformação do Homem segundo a vontade de Deus acontece pela obediência aos preceitos da lei e à pertença a um sistema religioso?

Para compreendermos a posição de Paulo, temos de partir de um pressuposto fundamental: a sua experiencia do Evangelho, da Boa-Noticia de Jesus, e Jesus Ressuscitado, que aconteceu na sua vida; é essa experiencia que Paulo se preocupa em narrar nos dois primeiros capítulos da carta, para justificar a sua posição. Paulo é judeu de nascença; é fariseu, modelo de observância da lei; no zelo pela lei, persegue os cristãos: «Ouvistes falar do meu procedimento outrora no judaísmo: com que excesso perseguia a Igreja de Deus e procurava devastá-la; e no judaísmo ultrapassava a muitos dos compatriotas da minha idade, tão zeloso eu era das tradições dos meus pais.» (Gal 1, 13). A sua experiencia de conversão, sem dúvida mais prolongada que o episódio do caminho de Damasco, centra-se na descoberta do significado da Ressurreição de Jesus: nela cumprem-se todas as Promessas de Deus no Antigo Testamento. A Ressurreição é a glorificação de um Homem que entregou a sua vida por todos, cuja imagem é a Cruz – é a grande experiencia da Graça. «De facto, quando ainda éramos fracos é que Cristo morreu pelos ímpios. Dificilmente alguém morrerá por um justo; por uma pessoa boa talvez alguém se atreva a morrer. Mas é assim que Deus demonstra o seu amor para connosco: quando ainda éramos pecadores é que Cristo morreu por nós.» (Rom 5, 6-8)

Desta experiencia surge a grande preocupação: nada pode retirar força, ou valor, ou significado à Salvação inaugurada na Ressurreição de Cristo, selada na sua entrega da vida. Ninguém se pode considerar como fora da Salvação de Cristo, seja por considerar que não a merece, seja por considerar que dela não precisa! Na Cruz, na entrega de vida em Jesus e na fidelidade de Deus-Pai que o Ressuscita, revela-se uma sobreabundância de Amor e Graça que a todos coloca, sem excepção, numa situação de indignos, de não merecedores, de pecadores, mas salvos, redimidos, perdoados, todos, sem excepção! «Na verdade, Cristo não me enviou a baptizar, mas a pregar o Evangelho, e sem recorrer à sabedoria da linguagem, para não esvaziar da sua eficácia a cruz de Cristo.» (1Cor 1, 17).

É precisamente desta experiencia que Paulo se insurge contra as tentações presentes nas lógicas da circuncisão e da lei judaica; não se trata em si da circuncisão ou da lei, que Paulo como judeu parece ter observado ao longo da sua vida, mas o que significam: a tentação de reduzir e particularizar a Salvação a um grupo religioso-etnico (circuncisão) e a tentação de se considerar digno e justo diante de Deus, merecedor da Salvação, através do cumprimento da Lei. Paulo nega um valor meritório, salvífico ou dignificante à lei: não é por sermos circuncidados (ou por pertencermos a um determinado grupo religioso-etnico) e não é por cumprirmos determinados preceitos que somos considerados justos e dignos diante de Deus, merecedores da sua Salvação. «Nós, por nascimento, somos judeus, e não pecadores de entre os gentios. Sabemos, porém, que o homem não é justificado pelas obras da Lei, mas unicamente pela fé em Jesus Cristo; por isso, também nós acreditámos em Cristo Jesus, para sermos justificados pela fé em Cristo e não pelas obras da Lei; porque pelas obras da Lei nenhuma criatura será justificada.» (Gal 2, 15-16).

Numa linguagem moral: não é a observância da lei que estrutura o Homem como pessoa, segundo o Projecto de Deus. A lei exterior surge como complemento, mas não transforma o crente automaticamente, como o acreditavam os fariseus do tempo de Jesus. O homem, em si e por si, não pode merecer a Salvação inaugurada e revelada na Ressurreição de Jesus: é um dom demasiado grande e pleno. Chama-se a Graça: «Quando chegou a plenitude do tempo, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, nascido sob o domínio da Lei, para resgatar os que se encontravam sob o domínio da Lei, a fim de recebermos a adopção de filhos. E, porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: "Abbá! - Pai!" Deste modo, já não és escravo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro, por graça de Deus.» (Gal 4, 4-7)
A experiencia de fundo de descobrir a Ressurreição de Jesus no que ela significa para o Homem como um destino em plenitude, eis o que leva Paulo a relativizar todas as “escadas” e “suportes” pelos quais o Homem tenta realizar-se diante de Deus e de si próprio. E todos os meios, obras e méritos das mãos dos homens tendem apenas para a exclusão e o particularismo – puros e impuros, fariseus e pecadores. Pelo contrário, a Salvação, a vida no Espírito que vem de Deus, é a única a dignificar, edificar e valorizar o Homem (justificar) sem criar essas divisões, pois é verdadeiramente universal: ninguém a merece, e todos a alcançam. Por isso proclama Paulo: «É que todos vós sois filhos de Deus em Cristo Jesus, mediante a fé; pois todos os que fostes baptizados em Cristo, revestistes-vos de Cristo mediante a fé. Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus.» (Gal 3, 26).

A partir daqui, a Justificação, a emergência do ser humano acontece na resposta e no acolhimento desta Salvação inaugurada e difundida pela Ressurreição de Jesus no seu Espírito: é a Fé. O ser Humano é verdadeiramente constituído, não a partir da observância de quaisquer leis morais ou religiosas, ou a partir de realizações humanas, sociais, profissionais, etc., mas a partir do Amor, Amor que é Perdão, Amor que é Eleição e cumprimento da Promessa de Deus. A resposta está no Amor, Amor fraterno, Amor de comunhão: «Irmãos, de facto, foi para a liberdade que vós fostes chamados. Só que não deveis deixar que essa liberdade se torne numa ocasião para os vossos apetites carnais. Pelo contrário: pelo amor, fazei-vos servos uns dos outros. É que toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo.» (Gal 5, 13)
A Ressurreição de Cristo liberta de todos os critérios humanos que geram divisões e classes entre os homens: a palavra-chave, agora, é Universal. «Foi para a liberdade que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes, e não vos sujeiteis outra vez ao jugo da escravidão.» (Gal 5,1). A única resposta digna diante de Deus, não de uma divindade ausente e sem rosto que apenas recompensa os nossos méritos, mas diante do Abbá que ressuscitou a Jesus e nela assumiu a Humanidade no seu Amor primeiro, gratuito e reconciliador, é a resposta do Amor presente na Fé, não a resposta de uma observância ritual e legalista. «Pois, em Cristo, nem a circuncisão vale alguma coisa, nem a incircuncisão, mas sim a fé que actua pelo amor.» (Gal 5,6).
um grande abraço

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