segunda-feira, 8 de setembro de 2008

Gen 2,25-3,24: o pecado atirado para a história, pronto a ser derrotado

«Estavam ambos nus, tanto o homem como a mulher, mas não sentiam vergonha. A serpente era o mais astuto de todos os animais selvagens que o Senhor Deus fizera; e disse à mulher: «É verdade ter-vos Deus proibido comer o fruto de alguma árvore do jardim?» A mulher respondeu-lhe: «Podemos comer o fruto das árvores do jardim; mas, quanto ao fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: ‘Nunca o deveis comer, nem sequer tocar nele, pois, se o fizerdes, morrereis.’ A serpente retorquiu à mulher: ‘Não, não morrereis; porque Deus sabe que, no dia em que o comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos e sereis como Deus, ficareis a conhecer o bem e o mal’.»
Vendo a mulher que o fruto da árvore devia ser bom para comer, pois era de atraente aspecto e precioso para esclarecer a inteligência, agarrou do fruto, comeu, deu dele também a seu marido, que estava junto dela, e ele também comeu. Então, abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueira umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins.
Ouviram, então, a voz do Senhor Deus, que percorria o jardim pela brisa da tarde, e o homem e a sua mulher logo se esconderam do Senhor Deus, por entre o arvoredo do jardim. Mas o Senhor Deus chamou o homem e disse-lhe: «Onde estás?» Ele respondeu: «Ouvi a tua voz no jardim e, cheio de medo, escondi-me porque estou nu.» O Senhor Deus perguntou: «Quem te disse que estás nu? Comeste, porventura, da árvore da qual te proibi comer?» O homem respondeu: «Foi a mulher que trouxeste para junto de mim que me ofereceu da árvore e eu comi.» O Senhor Deus perguntou à mulher: «Por que fizeste isso?» A mulher respondeu: «A serpente enganou-me e eu comi.»

O Senhor Deus fez a Adão e à sua mulher túnicas de peles e vestiu-os. O Senhor Deus disse: «Eis que o homem, quanto ao conhecimento do bem e do mal, se tornou como um de nós. Agora é preciso que ele não estenda a mão para se apoderar também do fruto da árvore da Vida e, comendo dele, viva para sempre.» O Senhor Deus expulsou-o do jardim do Éden, a fim de cultivar a terra, da qual fora tirado. Depois de ter expulsado o homem, colocou, a oriente do jardim do Éden, os querubins com a espada flamejante, para guardar o caminho da árvore da Vida.»

Ao longo da história de Israel, há um dado que vai marcar permanentemente a sua experiencia de fé: a evidencia do mal e do pecado. Perante um Deus santo e justo, a quem pertence a Criação, como pode existir esta realidade tão marcada pela injustiça, sofrimento e morte? A reflexão em Israel acontece a partir da sua experiencia religiosa: ao contrário do que estamos habituados a pensar, a experiencia religiosa de encontro com Deus não serve para aceitar passivamente o mal e o sofrimento, pelo contrário! É a partir do reconhecimento da Bondade de Deus e do seu Projecto de Aliança que o sofrimento mais surge como uma desordem, é posto em causa, é algo que simplesmente não faz sentido. A par desta realidade, o Antigo Testamento reconhece uma permanente situação de pecado, em Israel e toda a Humanidade, uma incapacidade de vivencia da Aliança e de uma harmoniosa convivência humana. É uma situação que abrange a todos os indivíduos, sem excepção, na ideia bíblica de Humanidade como união orgânica e solidária.

O nosso texto é uma reflexão sapiencial que procura dar respostas a esta situação, presente, através de um relato simbólico. Outras respostas foram surgindo ao longo do AT, como os livros de Job ou Qoélet, para além dos Profetas. O autor utiliza o método tipicamente hebraico da contradição: uma primeira parte apresenta a vocação do Homem como uma vocação ideal, de comunhão com Deus, como já vimos. Numa segunda parte, a não realização deste quadro pela emergência do pecado.

Apesar de já termos visto a primeira parte, dois elementos são aqui importantes: primeiro, o autor apresenta o contexto da relação com Deus com elementos que, na tradição profética, servirão para falar da era messiânica, da Plenitude dos Tempos: o jardim como morada de Deus, com as pedras preciosas e os querubins, a fertilidade, a concórdia com todos os seres vivos… Mais que uma reportagem do passado, o texto aponta o quadro ideal da relação com Deus à qual o Homem está chamado, vocação que está presente desde o Princípio no Projecto Criador de Deus.

Depois, as duas árvores, que estão no centro do Jardim e do nosso texto. Primeiro, a Árvore da Vida que, tal como a morte, na concepção bíblica é um conceito religioso mais que biológico. O Homem vive, ultrapassa a sua condição de ser da Adamah, na medida em que se relaciona com Deus, de quem recebe o Sopro da Vida, com o Próximo ou Auxiliar, e com a Criação. A esta Árvore, o Homem não está proibido de comer: é um Dom.

A segunda árvore é a Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal: discernir o bem do mal, possuir o conhecimento de toda a realidade é um atributo apenas de Deus. Aqui está em causa a própria relação do Homem com Deus: Deus, com o mandamento, abre espaço para a autonomia e resposta de Adam. Está em causa o Homem aceitar, na sua relação com Deus, a sua vocação de criatura, talhada para o acolhimento e dom, não para a posse, o juízo, a violência.

Assim, para o autor, está em causa a opção fundamental do Homem perante Deus, e perante a sua própria vida. O Homem tem a possibilidade real de dizer não a Deus, de recusar o projecto de uma relação de Aliança, de optar viver na lógica da posse, e não do acolhimento. A própria imagem de Deus fica deturpada: na boca da serpente, símbolo da tentação ou possibilidade de recusa, está um deus ciumento e concorrente do Homem, quando a Aliança é precisamente Deus a constituir o Homem como interlocutor e parceiro, na liberdade e responsabilidade e, portanto, capaz de recusar.

Com o pecado, as relações vitais do ser humano ficam deturpadas: o homem e a mulher têm vergonha da sua nudez, da sua condição de criaturas, e depois acusam-se mutuamente; o Homem foge de Deus que o procura sem desistir: “Onde estás?”. Até com a Criação a relação deixa de ser harmoniosa para se tornar numa fonte de conflitos. É a própria vocação do Homem, expressa nas suas relações vitais, que fica em causa com o pecado, com a lógica de viver na posse e na concorrência em vez do acolhimento e da Graça. Depois a história continuará: Caim matará Abel, a torre de Babel, o Dilúvio, a lógica da Lei de Talião (olho por olho, dente por dente) que representa a violencia controlada e legitimada.

A resposta do autor procura, portanto, desresponsabilizar o Projecto de Bondade de Deus, colocando a origem do mal na responsabilidade do Homem e na sua capacidade de dizer não à Aliança. É o Homem, com as suas opções de posse e domínio contrárias ao amor, quem marca negativamente os ritmos vitais e relacionais com o próximo, com a Criação, com Deus.

Em todo o caso, é fundamental analisar as portas abertas pelo autor, segundo a melhor tradição bíblica. É evidente que não podemos ler o texto como história científica. Mas é verdade que o autor fala do pecado como um Acontecimento, algo estranho que surge na história, independentemente do quando e onde: a entrada de ritmos negativos de pecado na história humana, acontecimento que remonta aos primórdios da Humanidade e que a percorre segundo o princípio bíblico da solidariedade. O autor preocupa-se em tornar o mal em algo histórico, ou seja: ele pertence à história humana, não ao Projecto Original de Deus que sonha uma Criação boa e, tal como o pecado surgiu historicamente, pode e deve ser combatido e transformado na história humana. Como um elemento estranho que entra num corpo.

O pecado não é algo natural ao ser humano, senão que pertence á sua responsabilidade e pode, por isso, ser vencido. O pecado, mais que uma questão religiosa, é uma questão puramente humana: trata-se de opções e dinâmicas de mal que afectam as relações e afastam a pessoa da sua vocação humanizante. A “emergência pessoal mediante relações de Amor e opções pelo bem” significa inscrever na história ritmos positivos que vencem a dinâmica do mal. O autor tira a carga mítica e fatalista do mal e atira-o para um campo de batalha, a história do Homem livre e responsável, que o tem de combater e vencer!

E Deus é o primeiro a fazê-lo: segundo a melhor tradição bíblica, aqui começa uma história de Salvação e não de perdição ou degeneração, como pode parecer a quem observa os acontecimentos em qualquer momento. É Deus, não o ciumento ofendido da tentação mas o Deus da Aliança, quem veste o Homem, é Deus quem impede que o Homem seja eternamente mau, é Deus quem acompanhará o Homem numa história de Graça, até ao Jardim ao qual está chamado, desde o Princípio, Jardim aberto em Cristo.



E com este post terminamos a caminhada no Antigo Testamento. Naturalmente que encontramos outros livros onde surge a questão do Homem, sempre à luz da Aliança: a reflexão do livro da Sabedoria, mais próxima ao tempo de Jesus, as respostas dos livros de Job e Qoelet à questão do sofrimento e do mal, ou a maneira como o Povo experimenta a Aliança de Deus, desde a Promessa de Abraão, a Libertação e Lei de Moisés, a Eleição dos profetas e reis...
Por agora fazemos um intervalo neste caminhada de Antropologia. Nos próximos dias partilharei três textos do redentorista Bernard Haring sobre a Igreja e a sua renovação. Mais tarde retomamos a nossa caminhada procurando um pouco a maneira como Jesus vê e vive o ser humano à luz da relação com o Abba, e depois a experiencia do Novo Testamento a partir da Ressurreição de Jesus. Verdade, verdade, será que há uma Antropo-logia do Novo Testamento?
Um grande abraço!



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