sábado, 28 de março de 2009

A Religião como experiência de Humanização


«É necessária uma revisão profunda do estilo de conceber e viver a religião. Não pode tratar-se já de que a vida religiosa signifique uma espécie de desdobramento, como se o crente fosse duas pessoas: por um lado, teria uma vida profana, comum com a dos demais e com idêntico estilo; mas, por outro, lhe acrescentaria uma segunda vida, a propriamente religiosa, que se sobreporia à outra, com maior ou menor influxo sobre ela.

De forma que a vida religiosa consistiria propriamente - se não de maneira exclusiva – nas crenças, ritos, orações e deveres próprios desse segundo âmbito, que cada vez se vai configurando mais claramente como algo que “pertence a Deus”. O outro ficaria de fora e seria o propriamente “nosso”: o âmbito no qual vivemos e ganhamos a vida como todos, nos divertimos e trabalhamos, participamos na política ou cultivamos um hobby.

Depois, naturalmente, estabelecem-se conexões. Mas estas são já sempre irremediavelmente extrínsecas. Pode-se pedir “ajuda” para que saia bem um assunto, ou “dar graças” por um determinado êxito; cabe inclusive reforçar ambas as acções, “oferecendo” um dom ou fazendo um “sacrifício”. As demais actividades são “profanas” em si mesmas, e convém “santificá-las” mediante alguma referência explícita ao religioso (como uma jaculatória) ou à “pureza de intenção”.

Mas em tudo isto o decisivo não são os detalhes, senão o marco geral no qual se incluem. Criam-se duas esferas de interesses: a de Deus e a do Homem. Deus é o “Senhor” que impõe “mandamentos” (os representados pelos dez clássicos, ainda que em realidade podia ter imposto outros, ou até nenhum). Em consequência, “premeia” se se cumprem, e “castiga” no caso contrário; ainda que também perdoe sob determinadas condições: arrepender-se, confessar-se, cumprir a penitência, contar além disso com a possível “pena temporal” (!) na outra vida… Como Senhor, também concede favores: em maior ou menor medida, a uns sim e a outros não, gratuitamente ou por troca com algo. Por isso convém pedir-lhe, muitas vezes com oferendas, talvez com missas, e procurar “intercessores” de distinto nível, e não poucas vezes especializados nas diversas necessidades…

Respeito a nós, tudo isso está a supor – pela força da sua própria objectividades, prescindindo da intenção dos sujeitos – que os homens e mulheres têm uma esfera de interesses próprios que não são os de Deus. Pois bem, justamente para tais interesses se pede ajuda e protecção ou se agradece quando se conseguem. Além disso, como os “nossos” interesses nem sempre coincidem com os d’Ele, há-que saber renunciar a muitas coisas “por” ou inclusive “a favor” de Deus. Até que, no extremo desta lógica, a afirmação de Deus coincide com a renúncia total tanto a si próprio como ao próprio interesse; e, de facto, nesse sentido se interpretam frases evangélicas como as de “carregar com a cruz”, “negar-se a si mesmo” ou “perder a própria vida”.

No final, não se pode estranhar que, quando a mudança de paradigma cultural chega à sua clara consciência de si mesmo, Deus apareça para muitos como inimigo da vida humana, como ameaça para a sua autonomia e impedimento para a sua realização. Nessa linha, e pela lógica elementar, acaba convertendo-se no inimigo total, que não deixa nada porque ocupa tudo: “Para enriquecer a Deus deve empobrecer-se ao homem; para que Deus seja tudo, o homem deve ser nada” (Feuerbach).

Estou muito consciente de que estas considerações têm muito de crueldade e ferem a sensibilidade dos crentes verdadeiros (inclusive a minha). Apresentam uma caricatura injusta, na qual a vivencia religiosa autêntica se nega, com toda a razão, a reconhecer-se. Esta poderia inclusive, apoiando-se em não menor número de dados, dar uma versão diametralmente oposta. Porque toda a vida cristã que avança até ao verdadeiro centro de si mesma consiste justamente no esforço por ir superando essa pendente dualista, objectivante e “comercial” da relação com o Deus vivo, para substitui-la progressivamente por laços muito mais íntimos, como os da confiança, gratuidade, intimidade, louvor ou amor.

Justamente, toda a nossa intenção é mostrar como o Deus cristão, quando se logra resgatar desde a nossa situação o dinamismo mais genuíno da sua presença, está postulando e promovendo uma nova compreensão, uma nova vivencia e uma nova praxis. Um Deus entregue por Amor, que não tem outros interesses que os nossos; que não sabe comercializar connosco, porque já nos deu tudo; que não nega o nosso ser, porque a sua presença consiste justamente em afirmá-lo, fundando a sua força e promovendo a sua liberdade.»
André T. Queiruga, Recuperar la Creación - Por una Religión Humanizadora, Santander 1996, p. 36

1 comentário:

figlo disse...

Esta caricatura que nos é apresentada por A. Torres Queiruga tem muito a ver com a vivência de muitos que se dizem cristãos...e eu confesso que às vezes também embarco nisto, e, se calhar , todos nós... um pouco... às vezes...Mas a culpa não é toda nossa! Aquela história de Jesus dizer " Dai a Cesar o que é de Cesar e a Deus o que é de Deus"...Este "repartir da vida" torna-nos tudo mais fácil e mais descomprometido...Deve ter sido aí que "os estados laicos da moda" devem ter ido buscar a "sua carta de princípios"!Um abraço