segunda-feira, 29 de junho de 2009

Salmos, ou o Diálogo de Aliança

Um tema bastante comum e presente, em encontros e retiros, é o da oração. No que tenho visto, quando vem este tema à baila, acaba por tornar-se um pouco moralista: temos de fazer oração, porque é importante, e porque não fazemos, e como fazemos, etc. Mas a oração, como de resto em tudo o que são os aspectos da fé, na Bíblia é uma história: não uma história do que nós fazemos ou devíamos fazer, mas uma história do que Deus faz e quer fazer connosco. A Oração, na Bíblia, já é uma resposta à iniciativa de diálogo de Deus! Por isso, a experiencia da oração torna-se uma mediação para caminhar no Projecto Salvador de Deus.

No Antigo Testamento, a autoria dos Salmos é simbolicamente atribuída a David, figura que representa a globalidade do povo de Israel. Isto conduz-nos a uma episódio interessante, entre Saul, primeiro rei de Israel, e David que inicialmente era seu servo ou escudeiro:

«David chegou à casa do rei e fez a sua apresentação. Saul afeiçoou-se a ele e fê-lo seu escudeiro. E mandou dizer a Jessé: ‘Rogo-te que deixes David comigo, pois ganhou a minha estima’. E sempre que o mau espírito atormentava Saul, David tomava a harpa e tocava. Saul acalmava-se, sentia-se aliviado e o espírito mau deixava-o» (1Samuel 16,23).

Conhecemos a história: Saul acabará por fracassar como rei, virando-se contra David e contra o próprio Deus. David triunfará e será nomeado rei. A diferença, para a Bíblia, é que David sabe louvar, ou cantar ao Senhor; Saul não: é vencido pela tristeza e pela inveja. Procura prender David, mas o Louvor e o Canto são livres e David escapa-se (1Sam 18,6-11).

A lógica bíblica, como sabemos, não é moralista: a Bíblia não é um livro que nos procura dizer como somos ou como temos de ser e fazer para sermos justos. A Bíblia é um conjunto de testemunhos de Graça, de como um Deus Santo e Justo intervém na história do seu Povo para o libertar e salvar por pura gratuita e liberdade da sua parte. A frase de João exprime-o perfeitamente, sendo Jesus o Rosto pleno desta Graça: «É nisto que está o amor: não fomos nós que amámos a Deus, mas foi Ele mesmo que nos amou e enviou o seu Filho» (1Jo 4,10).

Os Salmos (do grego Psállein, “tocar um instrumento de corda”) são o livro de cânticos que Israel elabora e entoa como Povo, seja no templo ou no caminho, para louvar a Deus. Certamente em alguns dos salmos estão os escritos mais antigos da própria Bíblia (do próprio tempo de David, cerca de mil anos antes de Jesus).

A experiencia central que está na fonte dos Salmos é a experiencia da Aliança que Israel faz de Deus. Na sua História está impressa a Presença e Acção de Deus que através dos acontecimentos vai guiando o Povo num caminho de Salvação. Nessa História vai-se revelando o Rosto Pessoal e Amoroso deste Deus que elege, por pura Graça, um Povo. O Salmo 136 é representativo, cantado todos os anos na Páscoa judaica, do qual seleccionamos uma parte pela sua extensão:

«Louvai o Senhor, porque Ele é bom,
porque o seu amor é eterno!
Só Ele faz grandes maravilhas,
porque o seu amor é eterno!
Fez os céus com sabedoria,
porque o seu amor é eterno!
Feriu os primogénitos dos egípcios,
porque o seu amor é eterno!
Tirou Israel do meio deles,
porque o seu amor é eterno!
Com a sua mão forte e o seu braço estendido,
porque o seu amor é eterno!
Não se esqueceu de nós, na nossa humilhação,
porque o seu amor é eterno!
E livrou-nos dos nossos opressores,
porque o seu amor é eterno!
Ele dá alimento a todo o ser vivo,
porque o seu amor é eterno!
Louvai o Deus do céu,
porque o seu amor é eterno
(Salmo 136,1-2.5.10-12.23-26)

O refrão “porque o seu amor é eterno” é repetido 26 vezes, valor numérico do nome YHWH em hebraico. Como se a identidade de Deus fosse a eternidade do seu Amor presente no seio de toda a História do Povo, desde “os céus feitos com sabedoria” à libertação “dos nossos opressores”, terminando no cuidado e ternura com que “dá alimento a todo o ser vivo”, como o fez ao longo da caminhada no deserto: «Deus ordenou às nuvens e abriu as portas do céu. Fez chover o maná para eles comerem e deu-lhes o pão do céu. Comeram todos o pão dos fortes; enviou-lhes comida em abundância» (Sal 78,23-25; cf. Jo 6,31).

De novo o louvor surge quando reconhecemos o ser humano no Projecto de Deus:

«Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos,
a Lua e as estrelas que Tu criaste:
que é o Homem para te lembrares dele,
o filho do Homem para com ele te preocupares?

Quase fizeste dele um ser divino;
de glória e de honra o coroaste.
Deste-lhe domínio sobre as obras das tuas mãos,
tudo submeteste a seus pés.
Ó Senhor, nosso Deus,
como é admirável o teu nome em toda a terra!»
(Salmo 8,4-7.10)
Nem passa pela cabeça da Bíblia que a presença de Deus surja para diminuir ou oprimir o ser humano! Pelo contrário, este recebe a maior dignidade que pode esperar: ser parceiro e interlocutor de Deus em Aliança, chamado a colaborar na obra da Criação e possuindo nela um lugar privilegiado. Chamado à comunhão de Graça com Deus, vemos aqui as proclamações fundamentais dos textos do Génesis, marcadas com uma solenidade especial:

«Depois, Deus disse: ‘Façamos o ser humano à nossa imagem, à nossa semelhança, para que domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais domésticos e sobre todos os répteis que rastejam pela terra’. Deus criou o ser humano à sua imagem, criou-o à imagem de Deus; Ele os criou homem e mulher» (Gen 1,26-27).

«Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida, e o homem transformou-se num ser vivo. Depois, o Senhor Deus plantou um jardim no Éden, ao oriente, e nele colocou o homem que tinha formado» (Gen 2,7-8).

A linguagem dos Salmos é a linguagem da oração do ser humano que, diante do Deus que se revela na sua História com a beleza desta Graça e desta Aliança, se apresenta tal como é e fala tal como se sente. O Salmo 130, central para Afonso de Ligório, é significativo:

«Do fundo do abismo clamo a ti, Senhor!
Senhor, ouve a minha prece!
Estejam teus ouvidos atentos
à voz da minha súplica!
Se tiveres em conta os nossos pecados,
Senhor, quem poderá resistir?

Mas em ti encontramos o perdão;
por isso te fazes respeitar.

Eu espero no Senhor! Sim, espero!
A minha alma confia na sua palavra.
A minha alma volta-se para o Senhor,
mais do que a sentinela para a aurora.

Mais do que a sentinela espera pela aurora,
Israel espera pelo Senhor;
porque nele há misericórdia
e com Ele é abundante a redenção.
Ele há-de livrar Israel de todos os seus pecados»

Aqui, o salmo é expressão de uma passagem ou um caminho significativo da parte de quem o canta e da parte de quem o acolhe. Da experiencia de angústia e do pecado, passamos à proclamação da verdade de Deus: “em ti encontramos o perdão… nele há misericórdia e com ele é abundante a Redenção… ele há-de livrar Israel de todos os seus pecados”. Temos duas passagens importantes, no salmo e na oração: primeiro, a passagem da angústia e tristeza para a confiança e esperança firmada na própria Vontade de Deus; segundo, da experiencia pessoal de quem o canta/proclama, para a experiencia comunitária de pertença a um povo (Israel), uma família, uma humanidade.

Os salmos nascem “à boca de Deus”, são a expressão do ser humano criado com o “hálito” ou “beijo” de Deus: sinal de intimidade, diálogo, comunhão, relação. São uma resposta e um eco: o primeiro a falar, o primeiro a iniciar este Diálogo de Salvação é Deus, que entra na nossa História, de Aliança e de Graça. A oração torna-se a memória, o acolhimento, o dizer da nossa parte este Diálogo: para que, recordando a História de Deus com os nossos pais e connosco, nos possamos abrir à sua Presença e Acção hoje, no nosso presente.

«O que ouvimos e aprendemos
e os nossos antepassados nos transmitiram,
não o ocultaremos aos seus descendentes;
tudo contaremos às gerações vindouras:
as glórias do Senhor e o seu poder,
e as maravilhas que Ele fez.

Ele estabeleceu um preceito em Jacob,
instituiu uma lei em Israel.
E ordenou aos nossos pais
que a ensinassem aos seus filhos,
para que as gerações futuras a conhecessem
e os filhos que haviam de nascer
a contassem aos seus próprios filhos;
para que pusessem em Deus a sua confiança
e não esquecessem as suas obras
».
(Salmo 78,3-7)
Um grande abraço!

1 comentário:

calmeiro matias disse...

Olá, Rui Pedro
Parabéns pela maneira de apresentar os salmos como um jeito familiar com Deus tomando-o a sério.
calmeiro matias