sábado, 15 de agosto de 2009

I. Uma História que se torna Projecto e Aliança

Viva! Nas próximas semanas vamos procurar por aqui percorrer de novo alguns passos no Mistério da nossa Fé, tentando lê-los segundo o Tom e a Marca que lhes dá a Acção do Espírito Santo. Não se trata de recitar a história da Acção do Espírito, é talvez ter em atenção alguns aspectos desta presença especial, de Segredo e Mestre... Bem, não é muito fácil explicar o que se pretende, de modo que fica o primeiro texto! Serão semanais, um pouco também por se tratar de textos algo longos. Um grande abraço!

Quando proclamamos todas as semanas na Eucaristia o Credo, anunciamos: “Creio no Espírito Santo, Senhor que dá a Vida… Ele que falou pelos Profetas”. O texto do Credo, do século IV d. C., é um texto breve, sintético, que procura formular o núcleo da fé, e normalmente cada frase tem por detrás uma longa história de reflexões, discussões, correntes… Algumas frases foram claramente enunciadas pelos Padres como resposta a determinadas correntes de pensamento no seio da Igreja consideradas contrárias e divisoras (heréticas) na fé vivida pelas comunidades.

Uma corrente comum no cristianismo nesse tempo era a de considerar o Antigo Testamento anulado, mais que ultrapassado, pelo acontecimento de Jesus. Defendiam que o Deus revelado no Antigo Testamento era contrário ao Deus de Jesus, até um deus diferente. Quando os Padres proclamam que “o Espírito Santo falou pelos Profetas” estão a ir ao encontro dessas correntes que ainda hoje podemos encontrar: não, o Antigo Testamento é Profético, não só porque é do seu seio em Israel que nasce Jesus, mas sobretudo porque a Vida de Jesus tem um significado universal, torna-se o centro e oferece o Sentido a toda a História da Humanidade, particularmente a história que Deus escreve com Israel e que este testemunha. «Muitas vezes e de muitos modos, falou Deus aos nossos pais, nos tempos antigos, por meio dos profetas. Nestes dias, que são os últimos, Deus falou-nos por meio do Filho». (Heb 1,1-2)

A conclusão é clara: à luz da Fé no Deus revelado em Jesus de Nazaré, a História da Humanidade é dinâmica, é um Caminho, tem no seu seio um Sentido: a História é um Projecto que Deus está a escrever com a Humanidade. Um Projecto de Aliança.

É esta experiencia da História que Israel faz e testemunha nas suas Escrituras. Estas não são literatura religiosa no sentido que entendemos hoje, como uma estante ou prateleira que encontramos na Fnac juntos das outras temáticas. Israel lê toda a realidade, toda a sua história à luz da sua relação com Deus, em todos os aspectos da sua vida como Povo: a sua constituição como Povo a partir das tribos da Palestina e dos grupos emigrados do Egipto, a sua vida social regulada pelos códigos legislativos com os mandamentos, a instituição da monarquia e o seu rei, as grandes políticas e práticas sociais criticadas pelos Profetas, tudo é lido à luz da relação com Deus. A História ganha sentido, a História de um Povo torna-se o contexto de revelação da Presença de Deus.

Porque, para a experiencia bíblica, tanto a vida em todas as suas dimensões é absolutamente dependente do Espírito, da Vida e Acção de Deus, como os acontecimentos e personagens da sua história, os Profetas, Reis, Juizes são guiados pelo Espírito de Deus, sem deixarem de ser homens com as suas limitações.

O Espírito de Deus, a Ruah YHWH, é certamente a linguagem mais forte para exprimir que o Deus de Israel é um Deus Vivo e Activo, em relação estreita, vinculada, íntima com a sua Criação e o seu Povo. O grande adversário da fé em Israel não é o ateísmo mas a idolatria: apontar o louvor e guiar a vida por divindades mortas, sem a Vida/Espírito, feitas e reduzidas à imagem do Homem, fechadas no seu mundo fechado, sem qualquer papel, presença ou contributo na vida daqueles que as seguem. Isaías é muito duro na sua linguagem, vale a pena ler:

«Vós sois testemunhas: acaso há outro Deus além de mim?
Não há outro rochedo, que Eu saiba.»
Os fabricantes de ídolos nada são,
as suas imagens preciosas nada valem.
Os seus devotos nada vêem
e nada compreendem;
por isso ficam confundidos.

Porquê modelar um deus ou fazer uma imagem,
se não serve para nada?
Olhai! Todos os seus fiéis serão confundidos,
pois os artistas que os fabricam são apenas homens.
Que se congreguem e compareçam todos!
Ficarão assustados e confundidos.
O ferreiro trabalha-o na bigorna,
vai-o modelando com o martelo
e trabalha-o com braços robustos.
Passa fome, cansa-se, não bebe e fica esgotado.

Quanto ao que trabalha com a madeira,
toma as medidas, faz o esboço a lápis,
desbasta a madeira com o formão,
modela-a com a lima
dá-lhe figura de homem e beleza humana,
para a pôr a habitar num templo.
Queima no fogo metade desta madeira,
assa a carne sobre as brasas
e come-a até se saciar.
Depois, aquece-se e diz:
«Bom! Estou quente e tenho luz!»
Do resto faz a imagem de um ídolo,
adora-o e dirige-lhe esta oração:
«Salva-me, porque tu és o meu deus!»
(Is 44,9-17).

Pelo contrário, a linguagem do Espírito, o Respirar ou Sopro Vital de Deus, traduz na Bíblia a íntima relação de Deus com o Ser Humano, a partir da experiencia de relação de Deus com a História de Israel:assim Deus consagra os 70 anciãos com o seu Espírito para auxiliarem a Moisés na condução do Povo (Num 11,16-17), ou unge a David para o consagrar como rei (1Sam 16,13), ou é prometido como Dom universal no tempo novo do Messias (Joel 3,1-2; confrontar a sua realização, segundo Act 2,16),
Do mesmo modo, também é pelo Espírito ou Alento de Deus, na intimidade de um Beijo, que o Homem se torna um ser vivo (Gen 2,7) – e será pelo Espírito de Deus que, na Plenitude dos Tempos, um Homem se tornará o “Espírito que dá a vida”, o centro de uma Comunhão, de uma Nova Humanidade a renascer numa vida nova, filial, pascal, eterna (Jo 7,38; Gal 4,4; 1Jo 3,1).

Uma experiencia forte, nova, diferente que Israel testemunha do seu Deus – um Deus que actua e é Senhor do seu Povo e da sua Criação através do seu Espírito, Vida, Respirar… Deste modo, as Escrituras deixam de ser simples literatura religiosa ou moral e tornam-se testemunho da História lida à luz da presença de Deus – e por isso tornam-se testemunho para ler a nossa História, hoje, ler essa Presença Viva: «porque a letra mata, enquanto o Espírito dá a vida» (2Cor 3, 6).

À luz do Deus no seu Espírito, a História passa de uma sucessão de dias, anos, acontecimentos, fruto da sorte ou do “um dia de cada vez”, e torna-se Projecto, Sentido, Dinâmica: uma História de Aliança, na qual uma das partes é Deus. E porquê?

Porque pelo Espírito a Criação, no seu sentido mais profundo, depende, vive, recebe, acolhe a sua Vida e Vitalidade de Deus; e pelo Espírito Deus está presente no mais íntimo e profundo da História do seu Povo, das suas Personagens, das suas vidas, revelando a sua Acção, a sua Vontade, o seu Amor. O Espírito que actua nesta História, o Espírito de Deus, é quem nos vai oferecer na Plenitude dos Tempos, depois da dinâmica e vitalidade da Criação, depois do milagre da Vida Pessoal e Humana que gera à sua imagem no Amor, é quem nos vai oferecer o Centro e Inaugurador de uma Nova Humanidade: o Filho.

1 comentário:

Calmeiro Matias disse...

parabéns por este texto.
Na verdade revela uma excelente maturidade de fé e um grande domínio bíblico.
Um abraço
Calmeiro Matias